sábado, 22 de outubro de 2011

Don Corleone - Um mito do cinema

Hoje reproduzirei o excelente texto que meu grande amigo Ricardo Paniguel escreveu em seu blog, http://bolapromatoblog.blogspot.com, que trata da "biografia" de Don Corleone, personagem mais emblemático da trilogia "O Poderoso Chefão", magistralmente interpretado por Marlon Brando (quando já idoso em "O Poderoso Chefão I") e por Robert De Niro (quando jovem em "O Poderoso Chefão II").


Robert De Niro
Marlon Brando
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"“Se dedica a família? Um homem que não se dedica à família nunca será um homem de verdade.”


A trilogia de “The GodFather” é uma das obras-primas da história da sétima arte. E, sem dúvidas, Marlon Brando imortalizou um dos personagens mais emblemáticos dessa história – Don Vito Corleone. Escrito por Mario Puzzo e dirigido com maestria por Francis Ford Coppola, o Don tornou-se um símbolo de poder e de influência, transcendo a arte e se confundindo à realidade devido à semelhança com a máfia siciliana.

Por um período, a homenagem aos jogadores por aqui foi dada cunhando-os como “Craques para sempre”. No entanto, nada se compara a poder organizá-los em suas respectivas qualidades e histórias com um tema de fundo. Nasce o “Chefão”. Quem é o padrinho, quem é o consigliere ou é apenas o caporegime? Pra começar, antes de qualquer jogador, um pouco da trilogia e, claro, de Don Vito (para a leitura, recomendo deixar o vídeo abaixo rolando...)

http://www.youtube.com/watch?v=HmmaAmryz1M&feature=player_embedded

SinopseDon Vito Corleone (Marlon Brando) é o chefe de uma "família" de Nova York que está feliz, pois Connie (Talia Shire), sua filha, se casou com Carlo (Gianni Russo). Porém, durante a festa, Bonasera (Salvatore Corsitto) é visto no escritório de Don Corleone pedindo "justiça", vingança na verdade contra membros de uma quadrilha, que espancaram barbaramente sua filha por ela ter se recusado a fazer sexo para preservar a honra. Vito discute, mas os argumentos de Bonasera o sensibilizam e ele promete que os homens, que maltrataram a filha de Bonasera não serão mortos, pois ela também não foi, mas serão severamente castigados. Vito porém deixa claro que ele pode chamar Bonasera algum dia para devolver o "favor". Do lado de fora, no meio da festa, está o terceiro filho de Vito, Michael (Al Pacino), um capitão da marinha muito decorado que há pouco voltou da 2ª Guerra Mundial. Universitário educado, sensível e perceptivo, ele quase não é notado pela maioria dos presentes, com exceção de uma namorada da faculdade, Kay Adams (Diane Keaton), que não tem descendência italiana mas que ele ama. Em contrapartida há alguém que é bem notado, Johnny Fontane (Al Martino), um cantor de baladas românticas que provoca gritos entre as jovens que beiram a histeria. Don Corleone já o tinha ajudado, quando Johnny ainda estava em começo de carreira e estava preso por um contrato com o líder de uma grande banda, mas a carreira de Johnny deslanchou e ele queria fazer uma carreira solo. Por ser seu padrinho Vito foi procurar o líder da banda e ofereceu 10 mil dólares para deixar Johnny sair, mas teve o pedido recusado. Assim, no dia seguinte Vito voltou acompanhado por Luca Brasi (Lenny Montana), um capanga, e após uma hora ele assinou a liberação por apenas mil dólares, mas havia um detalhe: nas "negociações" Luca colocou uma arma na cabeça do líder da banda. Agora, no meio da alegria da festa, Johnny quer falar algo sério com Vito, pois precisa conseguir o principal papel em um filme para levantar sua carreira, mas o chefe do estúdio, Jack Woltz (John Marley), nem pensa em contratá-lo. Nervoso, Johnny começa a chorar e Vito, irritado, o esbofeteia, mas promete que ele conseguirá o almejado papel. Enquanto a festa continua acontecendo, Don Corleone comunica a Tom Hagen (Robert Duvall), seu filho adotivo que atua como conselheiro, que Carlo terá um emprego mas nada muito importante, e que os "negócios" não devem ser discutidos na sua frente. Os verdadeiros problemas começam para Vito quando Sollozzo (Al Lettieri), um gângster que tem apoio de uma família rival, encabeçada por Phillip Tattaglia (Victor Rendina) e seu filho Bruno (Tony Giorgio). Sollozzo, em uma reunião com Vito, Sonny e outros, conta para a família que ele pretende estabelecer um grande esquema de vendas de narcóticos em Nova York, mas exige permissão e proteção política de Vito para agir. Don Corleone odeia esta idéia, pois está satisfeito em operar com jogo, mulheres e proteção, mas isto será apenas a ponta do iceberg de uma mortal luta entre as "famílias".

A história de Don Vito: Em 1901, seu pai, Antonio Andolini, foi morto por um chefe da máfia na Sicília conhecido como Don Francesco Ciccio, por ter se recusado a pagar um tributo, tendo isso sido considerado um insulto pelo Don. O irmão mais velho de Vito, Paolo Andolini, jurou vingança e desapareceu nas montanhas. Vito foi o único homem que acompanhou sua mãe no funeral de seu pai. Entretanto, durante o funeral, Paolo, que apareceu para assistir, foi assassinado. Algum tempo depois, os homens de Ciccio foram até a residência dos Andolini para matar Vito. Desperada, Signora Andolini, mãe de Vito, foi se encontrar com o Don.

Quando chegou para ver Don Ciccio, ela implorou pela vida de seu filho, dizendo que ele não procuraria vingança, mas seu pedido foi negado, pelo fato de que Ciccio acreditava que quando adulto Vito procuraria se vingar. Em pânico com a resposta de Ciccio, Signora Andolini agarra-o por trás e o ameaça, colocando uma faca em sua garganta, dizendo para Vito fugir. Ciccio consegue se desvencilhar e um de seus homens dispara contra a mulher, matando-a imediatamente. Vito consegue fugir dos homens de Ciccio, e durante aquela noite esconde-se com a ajuda de amigos da família, sendo mandado posteriormente para os Estados Unidos em um navio com outros imigrantes. Não falando inglês, ele é renomeado como Vito Corleone, quando o agente da imigração lê a identificação em sua roupa que diz: "Vito Andolini, de Corleone" (no romance ele escolhe o sobrenome Corleone).

Corleone foi adotado posteriormente pela família Abbandando em New York, e se tornou o melhor amigo de Genco Abbandando, amigo este que futuramente se tornaria seu consigliere. Anos depois, Corleone casou-se e estabeleceu uma família. Vito começou a trabalhar no armazém Abbandando, mas perdeu seu emprego, devido ao fato de Abbandando ter sido forçado a dar um emprego ao sobrinho de Don Fanucci.

Depois disso, Corleone conheceu Peter Clemenza, que pediu a Vito para guardar uma trouxa com o conteúdo desconhecido. Nesse pacote havia armas, mas Vito o guardou mesmo assim, vindo Clemenza pegá-lo dias depois. Em recompensa Clemenza oferece a Vito um tapete para sua casa, dizendo que iria pegá-lo na casa de um amigo. Chegando a casa, o referido “amigo” de Clemenza não estava, fazendo-o entrar e pegar o tapete. Na verdade, ele estava cometendo um roubo e quase foi pego quando um policial apareceu, mas nada aconteceu.

Corleone começou a viver e prosperar graças a esses pequenos crimes e fazendo favores em troca de lealdade. Ele cometeu seu primeiro assassinato matando Don Fanucci, o “padrinho” da vizinhança. Havia rumores que Fanucci era membro da “Mão Negra”, em 1919.

Tempos depois o jovem Vito começa um negócio de importação de azeite com seu amigo Genco Abbandando. Por anos ele usou esse negócio como fachada para o sindicato do crime organizado, fazendo fortuna com as operações ilegais. Durante uma viagem a Sicília com sua família em 1925, ele vingou seus pais e irmão, assassinando Don Ciccio e seus comparsas.

No começo da década de 30 Vito Corleone estabeleceu a “Família Corleone” com a ajuda de Peter Clemenza, Salvatore Tessio e Abbandando. Foi nessa época que Genco Abbandando tornou-se o conselheiro da família.
Em 1945 Corleone foi seriamente ferido em um atentado. Isso se deu devido a Vito ter recusado a proposta de Virgil Sollozzo de investir no ramo de narcóticos e usar os contatos políticos para não terem problemas a respeito desse novo negócio. Isso desencadeou uma série de eventos como o assassinato de seu primogênito Sonny e a eventual introdução de Michael à Família.

Vito morreu devido a um ataque do coração em Agosto de 1955, enquanto brincava com seu neto Anthony Corleone. Após isso, seu filho Michael assumiu o controle da Família. Sua ultima frase "A Vida é tão Bonita", aparece somente no livro.

Vito Corleone era um homem muito calmo e tranquilo. Nunca interrompia a fala de ninguém, pois pensava que as pessoas devem escutar, para ouvir o que os outros tem a dizer, e nunca elevava seu tom de voz, pois pensava que quem fazia isso estava nervoso, porque já havia perdido a razão.
 
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domingo, 9 de outubro de 2011

Cidade dos Sonhos - Obra prima do cinema contemporâneo

“As idéias são como peixes.
Podemos encontrá-los à superfície
das águas, mas lá em baixo, nas profundezas,
é que eles são maiores.
E sabem qual é o principal isco para os apanhar?
O desejo.
Temos que desejar as ideias.
É o desejo que traz cá para cima esses peixes graúdos."
(David Lynch)

Em 12/10/2011 o filme Mulholland Drive (Cidade dos Sonhos, em português) do diretor David Lynch completa exatos 10 anos de seu lançamento mundial, e, por isso - além, claro, de ser um dos filmes de que mais gosto - resolvi prestar-lhe uma singela homenagem neste espaço.

Edição em Blu Ray do filme
A idéia inicial do diretor era fazer uma série de TV para a rede ABC dos Estados Unidos, no mesmo modelo de Twin Peaks, mas a idéia não deu muito certo e o projeto ora rejeitado passou a ter apoio da Canal Plus, da França, para que Lynch terminasse seu trabalho, agora como filme. O filme, apesar de ter tido uma recepção crítica bastante divergente (valendo mencionar que alguns críticos riram do filme durante sua projeção, por acharem-no bastante ruim - na realidade isso se deu dada a uma abordagem simplista e superficial, algo que não é desejável para se compreender a obra deste diretor), faturou US$ 7,2 milhões nas salas de cinemas norte-americanos, recebeu indicação ao Oscar de melhor diretor, quatro indicações ao Globo de Ouro e recebeu o prêmio de melhor diretor no Festival de Cannes em 2001.

Escrito e dirigido por David Lynch - para quem me conhece, sabe que esse é um dos meus diretores favoritos -, que já nos brindou com excelentes obras: O Homem Elefante (1980), Veludo Azul (1986), Coração Selvagem (1990), Lost Highway (1995) e, claro, com uma das melhores séries televisivas de todos os tempos, Twin Peaks (1990), Cidade dos Sonhos representa um período de maturidade na carreira do diretor (se é que é possível considerar algum outro filme como "menos maduro" em relação a este, dada a notória qualidade de toda a sua obra) e está repleto de características tipicamente lynchianas, que aos poucos foram se consolidando em seus filmes: cenas surreais, quebra da lineariedade da narrativa, múltiplas interpretações para um mesmo fato - muitas vezes paradoxais -, ausência de organização, além da retomada de elementos de outros de seus filmes.

Considerado um diretor de filmes cult, David Lynch - um gênio - não é um profissional que liga para premiações, nem para o que Hollywood e os críticos acham de seus filmes, assim é que seus filmes são sempre "do seu jeito", além de considerados "estranhos", "difíceis", etc. E o são mesmo. Mas isso não tira toda a magia e a grandeza de suas obras, que necessitam de tempo para serem compreendidadas. Vale mencionar também que Lynch foi indicado 4 vezes ao oscar, várias vezes ao Globo de Ouro e ganhou dois prêmios no Festival de Cannes.

Naomi Watts e David Lynch
Laura Elena Harring e David Lynch

Feitas essas considerações introdutórias, passamos ao filme. Mas antes deixo claro que o filme não apresenta uma interpretação única, correta, e o que farei aqui é dar a minha visão a seu respeito - tanto é assim que, durante esses 10 anos, especialistas em cinema, jornalistas, estudiosos, fãs, etc. tentam dar uma explicação única, correta - científica -, mas suas visões não passam de teorias sobre o conteúdo do filme (algo que não é exclusivo desta obra: basta pesquisar a repercussão que a série Twin Peaks teve, inclusive no Brasil, para verificar esse aspecto mais aberto nas interpretações).

Sinopse

O filme conta a história de Betty (Naomi Watts, em seu primeiro grande papel no cinema, numa intrepretação magnífica, que deveria ter-lhe dado indicação e prêmio no Oscar), uma aspirante a atriz que veio de uma cidade pequena do Canadá em direção a Los Angeles com o sonho de se tornar uma verdadeira estrela de cinema, fica na casa de sua tia - que se encontra fora da cidade - e lá encontra uma mulher misteriosa, Rita (Laura Elena Harring, maravilhosa, miss Estados Unidos no ano de 1985), que sofrera um acidente - na avenida Mulholland Drive - e perdera a memória, carregando consigo uma bolsa cheia de dinheiro e uma chave azul. Betty, bastante determinada, inocente, pura e corajosa deseja ajudar Rita - exatamente o seu oposto - a recuperar suas lembranças e descobrir quem realmente é. Vale colocar também que durante essa investigação, ambas acabam se envolvendo sexualmente. Simultaneamente, é nos mostrada a história de um diretor de cinema, Adam Kesher (Justin Theroux), fracassado, que sofre pressões da máfia para escalar como atriz principal em seu filme uma moça por ela indicada, perdendo o emprego e sua fortuna, e com um casamento péssimo, em que sua mulher o largou para ficar com um limpador de piscinas.

Bom, a princípio, a história parece ser bastante simples, tomando cerca de dois terços do tempo em que até então tudo faz sentido, ressalvadas algumas aparições estranhas, sem explicação e conexão com o contexto até então apresentado (como o mendigo, o cowboy e o Clube Silencio), mas que não comprometem a compreensão.  Mas quem disse que Lynch nos facilita as coisas?

Justin Theroux e Laura Elena na cena do jantar
Após a cena do Clube Silencio, vemos que a trama muda de forma - sobretudo na cena do jantar na casa do diretor de cinema - e a história que resume a segunda parte do filme, e a "nova" relação entre as personagens foi descrita de forma bastante clara pelo crítico de cinema Pablo Villaça, do site Cinema em Cena (link ao lado - recomendo bastante), que segue transcrita:

"Depois de receber uma herança deixada por sua tia Ruth, Diane (Naomi Watts) viaja para Los Angeles para tentar alavancar sua carreira de atriz. Certo dia, ela faz um teste para participar do filme A História de Sylvia North, mas é rejeitada pelo diretor da produção, Bob Rooker, que acaba escolhendo a bela Camilla Rhodes (Laura Elena Harring) para o papel-título. Porém, Diane e Camilla acabam se tornando amigas e, eventualmente, amantes - sendo que esta última, agora uma atriz de sucesso, freqüentemente arruma pequenas pontas para a namorada em seus filmes.

Infelizmente, nem tudo corre bem para as duas: durante as filmagens de seu novo projeto, Camilla se envolve com Adam Kesher, o diretor responsável pela empreitada (apesar de ser casado, ele logo se divorcia da esposa, alegando que ela o traíra com o rapaz responsável por limpar a piscina, deixando-a sem direito a nada). Enciumada, Diane passa a brigar com Camilla - até que, certa noite, é convidada para uma festa na mansão de Kesher, sem saber que será obrigada a testemunhar o anúncio do casamento de sua namorada e o cineasta.

Sentindo-se humilhada, Diane decide contratar um assassino profissional para executar Camilla, pagando 50 mil dólares pelo serviço. Depois de receber o dinheiro e pegar uma foto de sua vítima, o sujeito diz que Diane encontrará uma chave azul em seu apartamento quando tudo estiver terminado – e, de fato, logo a garota recebe o aviso de que sua ex-namorada está morta. No entanto, corroída pelo remorso, ela tem longos sonhos envolvendo Camilla e, mesmo quando acordada, não consegue parar de pensar no que fez.

Torturada pelas lembranças e pela crueldade de seus atos, Diane finalmente comete suicídio.

Rita, personagem de Laura Elena Harring
Naomi Watts e Laura Harring - Amantes na Trama
Diante disso, vemos que o filme nos mostra duas situações completamente distintas e paradoxas entre si sejam na relação que as personagens tenham umas com as outras, nas características de cada uma, nos nomes, etc., sendo esse novo quadro apresentado apenas nos 20 minutos finais da projeção (daí a confusão e, para muitos, o motivo de não gostar/entender o filme).

A tradução do filme em português, somado ao fato de existirem duas tramas distintas dentro do mesmo filme, com os mesmos personagens, dá a entender que alguma das duas histórias representa um sonho. Sim, essa idéia é correta. Mas sonhos de quem? E qual parte é a realidade?

Para que seja possível explicar o que ocorre no filme de verdade, na minha visão, é necessário ter em mente duas idéias de outras obras do diretor: O conceito de doppelganger, da série Twin Peaks e o filme Lost Highway.


Elementos de Twin Peaks e Lost Highway em Cidade dos Sonhos


OBS: Os conceitos aqui apresentados pressupõem já vistas pelo leitor ambas as obras citadas.

Mulholland Drive é considerado uma continuação de Lost Highway, de 1997, mas não em termos de história, mas sim pela existência de duas partes distintas envolvendo os mesmo personagens, em que o protagonista, normalmente um indivíduo fracassado, faz uma projeção/representação, seja em forma de delírios ou de sonhos, de como deveria ser sua vida ou como determinada situação se passou, sobre a sua realidade, como forma de desviar-se dos verdadeiros acontecimentos.

No filme de 1997, o personagem de Bill Pullman vive um casamento que vai de mal a pior, desconfia que esteja sendo traído pela sua esposa (representada pela bela Patricia Arquette), não consegue sequer ter uma noite de sexo com ela – o personagem “brocha” em determinada cena - e acaba assassinando-a de forma brutal. Tudo isso por acreditar que a culpa do fracasso de seu casamento fora de sua esposa. Na prisão (isso não é explícito, pois a partir daí temos uma nova história), ele projeta uma nova realidade, em que passa a ser um cara completamente diferente, bem sucedido com as mulheres, tem uma relação bastante apaixonada com uma mulher idêntica a sua "esposa", etc. Ou seja, é criada uma nova realidade projetada pela mente do personagem para tentar arrumar uma explicação para o que aconteceu de verdade (tentativa de colocar sua esposa como a verdadeira culpada).

Patricia Arquette em Lost Highway

Essa idéia de duplicidade de personagens e papéis – em Lost Highway, Fred/Pete, Mr. Eddy/Dick Laurent e Reneé/Alice – em Cidade dos Sonhos, Diane/Betty, Rita/Camilla, etc. é lançada, de forma embrionária, pela primeira vez em Twin Peaks, no conceito de Doppleganger, que significa uma “duplicação do indivíduo”.

Black Lodge em Twin Peaks
Na célebre série dos anos 90, ocorre que no Black Lodge – espécie de passagem entre o céu e o inferno, por onde todas as almas passam - existe uma cópia de uma pessoa, mas não necessariamente que essa cópia seja psicologicamente igual, mas fisicamente sim. Caso o indivíduo que esteja no Black Lodge seja possuído por um medo profundo, sua alma é aprisionada e sai para o mundo fático sua cópia (foi exatamente isso que aconteceu no último episódio da série, quando o Agent Cooper ficou preso no grande salão e seu Doppleganger retornou, agora possuído pelo espírito do Bob – alegoria para o mal).

A idéia, portanto, de utilizar mesmos personagens para representar situações distintas não é novidade na obra do diretor, mas com uma diferença em Cidade dos Sonhos: foi nesse filme que a idéia de projeção de uma “realidade” e a duplicação de papéis tomou forma mais forte e aguda.

Rita e Betty no Clube Silencio

Bom... Voltando agora ao filme e respondendo às perguntas acima feitas, com base no apresentado agora há pouco, podemos concluir o que se segue:

1 – A segunda parte do filme é a realidade (a partir da cena do jantar), em que Diane, uma pessoa fracassada, insegura, e que vive à sombra de sua amiga/amante Camilla, após encomendar a morte da personagem representada pela Laura Harring, tenta reconstruir o que se passou.

2 – Nessa tentativa de reconstrução, a personagem projeta uma realidade que gostaria que tivesse ocorrido, colocando-se como uma pessoa forte, segura, talentosa e que está para ajudar sua amiga/amante, Rita, como se fosse uma pessoa necessária para sua vida – algo que não aconteceu na realidade, pois fora rejeitada por Camilla/Rita (ocorre entre elas uma inversão das características psicológicas ao se comparar o sonho e a realidade).

3 – O diretor de cinema, Adam, que na realidade anuncia seu casamento com Camilla/Rita, no sonho de Diane/Betty aparece como um indivíduo fracassado: ficou pobre, apanhou do amante da mulher, etc. - um nítido desejo da personagem rejeitada em relação àquele que ficou com a sua amada.

4 – Diane/Betty, ao sentir remorso pelo o que fez e não sendo possível o sonho substituir a realidade, comete suicídio. 

5 – Todos os personagens, de forma ou de outra, possuem papéis e nomes diferentes, sempre pautados na visão e no interesse que Diane/Betty tinha ao projetar seus desejos no sonho.


6 – Durante toda a primeira parte do filme são mostrados indícios de que tudo aquilo se trata de um sonho (um grande exemplo ocorre na cena do Club Silencio*, em que é dito a todo o momento que tudo aquilo não passava de uma ilusão).

* Em breve farei um post comentando e dissecando algumas cenas fundamentais dos filmes do David Lynch, relacionando os personagens principais às modificações drásticas que ocorrem na trama dos filmes e apresentando idéias comuns a todas elas (Ex: Veludo Azul, Lost Highway, Cidade dos Sonhos).
Laura Harring, David Lynch e Naomi Watts
Conclusão

Essas linhas são poucas para ir ao fundo das questões e mistérios que o filme nos apresenta, mas resolvi dar uma visão geral da interpretação da obra, que já é de grande complexidade. Para quem viu o filme, vão ficar algumas questões: o que é o Clube Silencio? A mulher de cabelos azuis? O cowboy? O sujeito na cadeira de rodas? O mendigo? A caixa azul? Etc. Mas essas respostas não são definitivas, tratam-se de teorias interpretativas, já que o filme, por si só, é aberto e abstrato com relação a essas figuras. Cabe a cada um tentar explicar os aspectos mais intrínsecos do filme.

Cidade dos Sonhos é com toda a certeza uma grande obra, ainda bastante recente, mas que, com o tempo será lembrada como um clássico do cinema. Novamente, todo o talento do diretor David Lynch se mostrou estupendo, e, ainda bem, fomos brindados com outro grande filme feito e pensado conforme as linhas iniciais: “uma tentativa de trazer à superfície um peixe grande”.

Definitivamente o diretor vem tentando cumprir isso que foi dito, nos apresentando obras diferentes do padrão a que estamos acostumados, prontas para serem digeridas e aproveitadas em sua plenitude. O grande segredo para tentar entender seus filmes e suas idéias – das mais simples às mais surreais – está no fato de que a arte autêntica só é experimentada realmente quando perdemos o medo de entrarmos em um teatro de ilusões.

Por isso, para quem deseja penetrar nesse mundo criado pelo diretor e ter uma nova experiência cinematográfica, recomendo bastante Cidade dos Sonhos, assim como toda a obra do cineasta.

Agora resta saber, qual sua opinião após essa experiência lynchiana?

Pôster do Filme
David Lynch nas Câmeras